domingo, 30 de março de 2008

A Fenomenologia das dependências

A felicidade e o prazer se conjugam, ou não, através de atos de consumo que se dirigem a múltiplos objetos em busca de múltiplas finalidades. Este movimento ora ameniza a angústia, ora a intensifica através do vazio que se mostra em um imperativo ato de ter e possuir. O prazer como ausência de dor é um ponto importante discutido na filosofia.
O prazer, e o que pode ser entendido ou não como estado de felicidade, revelam diferentes aspectos da sua natureza, ou seja, pelo o que vem sendo problemático e o que vem sendo incluído no conceito de dependência.
Nos dias atuais, a dependência não está restrita apenas ao abuso de álcool e do consumo de drogas ilícitas, mas é também o jogo patológico, o sexo compulsivo, o abuso de medicações psicotrópicas. A busca do prazer é um dos fins necessários da conduta humana e ele mostra-se problemático quando sob sua égide a conduta humana é posta em questão. Isso acontece quando, na prática da realização do prazer, existe algum tipo de confrontação com perspectiva moral dentro de um grupo, ou quando outros setores da existência do indivíduo ficam comprometidos por causa desta busca.
O prazer deixa de ser uma discussão unicamente biológica quando, a partir do desenvolvimento de um grupo, se consolida uma cultura com um determinado universo de valores. Esses valores tornarão permitida a realização de alguns prazeres, desde que realizado numa determinada medida, e censurará a realização de outros, em nome de um sistema moral que tenta suprimir os riscos de descontrole.
Nos gregos encontramos o processo de refinamento da experiência do prazer na vida cotidiana. O prazer estava presente num culto simultâneo do corpo e do espírito. Ao mesmo tempo em que os gregos foram refinando e ampliando as múltiplas formas de se buscar prazer, também iniciaram algumas reflexões éticas geradas pelo caráter especifico de sua natureza DESEJO X PODER.
Ao discutir sobre a natureza do prazer, os gregos tentam descrever pela primeira vez como se dá a experiência de desejar, utilizado o desejo como algo inerente ao prazer. Na expressão do desejo na vivência do prazer os gregos construíram duas visões opostas sobre o valor do prazer:
O pensamento platônico, no qual problematizam o cultivo de alguns prazeres, principalmente os que estão suscitados pelos apetites do corpo – a busca do conhecimento da verdade.
O movimento hedonista: coloca o prazer como o valor máximo de expressão de felicidade. É a procura indiscriminada do prazer (nesse caso, teria maior proximidade com o que se observa no fenômeno das dependências) – único bem possível. No hedonismo, a medida é o corpo e o seu valor ético se funda numa prática que possa circunscrever a arte do gozo.
Dentro do pensamento hedonista, a felicidade se funda no prazer – hedonismo epicurista: defende que o prazer consiste simplesmente em evitar a dor. “O prazer no epicurismo é negativo e reativo: gozar é não sofrer, ao contrario, no hedonismo de Aristipo, o prazer é positivo e ativo.”
Para os epicuristas, o desejo natural só era permitido e necessário para sobrevivência e bem-estar do organismo. Existirão prazeres que se supõem rejeitados, ou seja, qualquer outro desejo que revele intenções que estejam fora do necessário para a manutenção da integridade física.
Existe um grande preconceito para reconhecer e dialogar mais corajosamente sobre o que é o prazer no consumo das substâncias psicoativas e sobre como este prazer se configura quando se constitui a dependência. Observa-se isso de duas formas, pois o silencio permeia quem trata e quem recebe este tratamento.
O prazer da droga, a princípio, é julgado como mal, independente das características que configuram um padrão de uso recreativo, abusivo ou dependente. São muitos os motivos que levam alguém a fazer uso de drogas: por curiosidade, para fugir de determinada situação, para pertencer a um grupo, para relaxar, para estimular, etc.. No entanto, a imediata e intensa sensação de prazer, ou ausência de desprazer, suscita novo uso. Nada teria isso de mau se não se verificassem, em alguns casos, más conseqüências desse uso e da dependência.
A droga advém como promessa e, também, experiência de sentir-se melhor. A dependência configura-se quando a confiança nessa promessa obscurece todos os outros apelos do mundo, fazendo com que o cuidado consigo mesmo fique limitado a esta única forma de promoção de um viver melhor.
A busca repetitiva de sensações de prazer nas drogas faz com que o dependente altere sua relação com o tempo, aliviando-se constantemente da necessidade de cuidar de seu futuro. O uso repetitivo promove a busca de uma sensação já conhecida como prazerosa: a realização da droga é o prazer previsto. Desse modo, sem ter que construir-se no vir-a-ser, o dependente encontra possibilidade de alívio em algo já dado de antemão, sensações e modos já conhecidos. Não é mais necessário buscar ser o que não é, pelo contrário, ilude-se na crença de já ser, num estado fechado, em modo único de obtenção de prazer. Restrito no cuidado de seu futuro, encontra-se enclausurado num infértil e eterno presente sem fim. Quanto mais se usa a droga, menos se obtém prazer (tolerância).
Conclusão
As drogas sempre existiram e sempre vão existir. Trata-se de uma realidade perene e historicamente comprovada. No entanto, a maneira como os seres humanos se relacionam com as substâncias psicoativas é mutável. O debate atual sobre o status das substâncias psicoativas dentro da sociedade ocidental vem se desenvolvendo a partir das soluções apresentadas pelos modelos norte-americano e europeu. O primeiro tem privilegiado a repressão ao tráfico e ao consumo, à custa da supressão de inúmeros direitos civis. Já na Europa tem sido adotada uma visão mais tolerante e flexível, respeitando a cidadania.
Talvez o melhor a fazer seja o de considerar soluções que respeitem os direitos sociais, a tolerância e o convívio com as diferenças. Contudo é muito difícil contemplar todas essas situações.
O homem pode escolher utilizar as SPA’S como forma de alcançar algo que lhe parece inacessível, como pode ser visto em sua história, em que tenta prolongar o prazer, aplacar a dor, dominar o outro, ultrapassar seus próprios limites, diferenciar-se dos demais através de comportamentos bizarros, dicotomizar suas relações no mundo, e até mesmo obter sucesso. Na tentativa ilusória de tornar-se o que não se é, esquece-se do mundo e de si, opta por não escolher ou, então, apóia-se na sua liberdade para alcançar o impossível. Acredita poder controlar o tempo de acordo com seu desejo e até sentir-se imortal.
Já que não é possível para um psicoterapeuta dissipar a ilusão do homem na tentativa de resolver os paradoxos de sua vida, cabe-lhes a tarefa de torná-lo atento. Deve ser um facilitador na abertura de seu leque de possibilidades, vislumbrando seu horizonte onde se trabalha com o possível e o real, na singularidade da vivência concreta de cada um no mundo.

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